
Acabo de retornar da Europa, onde tive a oportunidade de observar de perto a crescente busca pela "transformação digital" e as intensas discussões em torno da Inteligência Artificial. Nas conversas, nos eventos e nas mídias locais, ficou evidente como governos, empresas e a sociedade estão debatendo diversos assuntos e, girando nessa revolução, há um foco cada vez maior na questão tecnológica (IA) e seus impactos na humanidade. Essa experiência me levou a refletir sobre como este momento se assemelha a um novo Iluminismo, mas agora com desafios ainda mais complexos e imprevisíveis.
O Iluminismo foi um marco na história do pensamento humano, uma tentativa de definir a razão e entender sua relação com as eras anteriores. Movidos pela busca pelo conhecimento e pelo desejo de construir sociedades mais justas, pensadores como Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, a quem estudo até hoje, formularam visões sobre a natureza humana e a estrutura social baseadas em estados teóricos da natureza.
A grande questão que permeava aquele período era como reunir e disseminar o conhecimento humano de forma objetiva, sem vieses, permitindo a criação de uma sociedade verdadeiramente cosmopolita, sustentada por valores sólidos, onde indivíduos esclarecidos pudessem guiar o caminho rumo à paz perpétua e ao florescimento da humanidade?
No entanto, diante das constantes guerras, crises e conflitos de diversas formas que testemunhamos globalmente, parece que algo se perdeu pelo caminho. Diria que há uma conexão direta com a “insociabilidade sociável do ser humano” e a ética, conceitos já postulados por Kant.
Agora, ao adentrarmos a era da Inteligência Artificial e da iminente construção da Inteligência Artificial Geral (GIA), estamos novamente diante de mais uma ruptura dentro da ruptura já em curso. A própria natureza humana, que serviu como base para sistemas filosóficos e estruturas sociais, será profundamente impactada. Se a razão e o conhecimento foram os pilares do Iluminismo, como reconfigurar esses conceitos em um mundo onde a inteligência não é mais exclusivamente humana?
Quero deixar claro que não sou contra a IA nem a encaro com temor, muito pelo contrário. Vejo nessa tecnologia uma oportunidade para expandir nossa capacidade de pensar sob novas perspectivas e gerar benefícios imensuráveis para a humanidade. No entanto, como filósofo e pensador crítico, meu objetivo aqui não é apenas exaltar ou demonizar a IA, mas sim fomentar uma reflexão profunda sobre suas implicações.
Enquanto muitos dos meus pares permanecem na academia, eu escolhi empreender no campo da inteligência aplicada. Isso me coloca em uma posição diferenciada, onde posso observar, na prática, como a IA impacta o mercado e as empresas. Atuando diretamente nesse cenário, acabo por desenvolver uma percepção muito mais concreta da realidade, compreendendo tanto o imenso potencial dessa tecnologia quanto seus desafios e limitações. Essa vivência me confere uma visão ampliada e fundamentada, agregando ainda mais valor às minhas reflexões e análises sobre o tema.
Por isso eu consigo entender que a IA não apenas processa dados, ela começa a formular padrões, tomar decisões e até gerar conhecimento de maneira independente. Isso levanta questões fundamentais sobre a razão humana, que foi historicamente a base da organização social e moral. E pelo que vejo, ainda não sabemos ao certo o que acontece quando uma inteligência não humana começa a participar desse processo, especialmente quando não há uma ética clara, definida e aplicada.
Uma pergunta que surge é: qual será o novo papel do ser humano na construção do conhecimento? Como garantir que a disseminação desse conhecimento seja isenta de vieses e empregada para o bem comum?
Além disso, as estruturas empresariais modernas, nas quais atuo diretamente, precisam refletir essa transformação. A IA por exemplo, pode ser amplamente utilizada para aprimorar a experiência do cliente (CX), personalizando interações, otimizando processos e prevendo comportamentos.
No entanto, até que ponto essas decisões automatizadas realmente beneficiam os consumidores e a sociedade como um todo e não apenas os interesses das empresas? A ausência de uma ética aplicada de forma consistente aos profissionais que desenvolvem e operam sistemas de IA levanta dilemas profundos sobre a nossa responsabilidade corporativa e social.
E não para por aí. As aplicações da IA vão muito além do mundo corporativo. Na saúde, por exemplo, a IA tem o potencial de revolucionar diagnósticos, personalizar tratamentos e otimizar processos médicos. Algoritmos de aprendizado profundo já conseguem detectar doenças com precisão superior à dos médicos humanos em determinadas situações. Mas surge um dilema essencial, que é o limite de onde podemos confiar nessas decisões? E mais, quem deve ser responsabilizado quando ocorrem erros?
No mundo empresarial, a IA já desempenha um papel fundamental na automação de processos, na tomada de decisões estratégicas e na otimização da cadeia de suprimentos. A eficiência proporcionada por essas tecnologias é inegável, mas, ao mesmo tempo, é necessário refletir sobre o impacto social da automação e a possível substituição da força de trabalho humana. Será que como empresas realmente estamos preparados para lidar com os desafios da empregabilidade, do processo de empobrecimento da mão de obra e da requalificação profissional em um mundo onde a IA assume cada vez mais funções?
O que a sua empresa tem feito nessa direção? Eu sei que os modelos de IA, por sua própria natureza, refletem os dados nos quais foram treinados. Isso significa que, sem um rigor ético na sua concepção, que vem de profissionais com competências únicas, podem perpetuar e até amplificar desigualdades sociais, preconceitos e práticas questionáveis dentro das empresas e da sociedade.
Não sei vocês, mas eu me pergunto o tempo todo, qual a melhor forma para que possamos garantir que a tecnologia sirva ao progresso humano e não se torne uma ferramenta de exploração e manipulação?
Outro ponto central do Iluminismo que me recordo foi a crença no progresso contínuo baseado na ciência e na razão. No entanto, a aceleração tecnológica proporcionada pela IA levanta dúvidas sobre nossa capacidade de manter esse progresso dentro de parâmetros éticos e sustentáveis. Se os filósofos iluministas buscavam a emancipação humana através do conhecimento, corremos agora o risco de nos tornarmos dependentes de inteligências que não compreendemos completamente.
Vale comentar também sobre a construção da Inteligência Artificial Geral, significa que, pela primeira vez, poderemos compartilhar o espaço cognitivo com uma entidade capaz de pensar e aprender como (ou melhor que) nós. Isso nos leva a questionar a própria definição de inteligência, criatividade e consciência. Ainda podemos falar em um projeto de esclarecimento humano, ou estamos inaugurando um período no qual o próprio conceito de "humano" precisará ser redefinido?
Se no século XVIII as enciclopédias e academias foram os templos do conhecimento e da razão e que eu particularmente uso até hoje, mas enfrentamos o desafio de criar espaços novos para debater as implicações filosóficas, éticas e práticas da IA. Precisamos pensar em meios de garantir que essas inteligências artificiais sejam desenvolvidas dentro de princípios que respeitem a dignidade humana e promovam uma sociedade cosmopolita.
Kant, em sua "Crítica da Razão Pura", buscava estabelecer os limites do entendimento humano. No prefácio da obra, ele nos alerta que a razão levanta perguntas que não pode responder, pois ultrapassam as faculdades humanas. Essa reflexão se torna crucial ao falarmos de IA, pois até onde poderemos compreender os sistemas que criamos? Há um limite para o entendimento humano sobre a própria tecnologia que desenvolve?
Afinal, a IA é, em última análise, uma criação humana. Como todo sistema, ela possui limites, e nossa capacidade de estabelecer critérios éticos e filosóficos para seu uso será fundamental para definir o futuro da humanidade. Estamos diante de um novo Iluminismo ou da necessidade de um paradigma filosófico completamente distinto? Se antes a razão humana buscava compreender a si mesma, agora ela precisa definir como coexistirá com inteligências que podem transcender suas próprias limitações.
O que virá depois? Estamos preparados para essa transição?
Essas são as questões que precisamos enfrentar. O futuro da humanidade e das empresas pode não depender apenas de nossa capacidade de pensar, mas de nossa disposição para repensar quem somos e para onde queremos ir.
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