A síndrome da encenação
- Horus Mentoria
- 8 de mai.
- 5 min de leitura

Tenho acompanhado algumas empresas de perto. Grandes e médias. De tecnologia, de serviços, da indústria e do varejo. E em muitas delas, algo inquietante tem se repetido com uma frequência perturbadora, há um padrão invisível, mas devastador, se alastrando como uma doença silenciosa que contamina estruturas, discursos, decisões e, principalmente, relações.
Preciso dar um nome a isso. É a síndrome da encenação.
Ela se instala lentamente, sem alarde. Começa com pequenas incoerências toleradas no dia a dia, passa despercebida nas reuniões semanais e ganha força no vácuo entre o que se diz e o que se vive. Até que, um dia, sem que ninguém perceba exatamente quando aconteceu, a empresa já não é mais uma organização viva e pulsante. É um palco. Um ambiente em que todos atuam, mas poucos constroem.
Líderes e equipes dizem que entenderam os valores.
Dizem que estão engajados, que topa o desafio e que está “dentro”. Concordam com tudo.
Assentem com a cabeça, assinam o combinado. Mas, no momento de encarnar o que foi dito, o comportamento não acompanha a fala.
É nesse vão, nesse buraco existencial entre o discurso e a prática que o teatro corporativo monta seu cenário e começa o espetáculo. Tem pessoas que decoram o script, que falam que são disruptivos, mas não digerem o sentido de tudo que é dito e trabalhado, muitos reproduzem falas sobre responsabilidade, mas aguardam que outros tomem a frente. Alguns discutem liderança com frases feitas e comentários bonitos nas redes, mas agem com medo, arrogância, intolerância, egoísmo ou omissão.
E quando erram, porque erram muito, o impulso não é reparar o erro, mas proteger a própria imagem. Salvam o CPF, mesmo que o CNPJ esteja sendo comprometido.
A verdade nua é que todos querem transformação e novos resultados. Mas pouquíssimos aceitam ser transformados para construírem resultados de verdade e sem mágica. Com isso o ambiente, aos poucos, se torna um campo minado de vaidades e silêncios estratégicos. A comunicação vira um teatro de sombras onde fala-se muito, diz pouco, escuta-se quase nada e se justificam muito.
As conversas dentro da empresa permanecem na superfície, porque descer ao fundo exigiria vulnerabilidade e vulnerabilidade é incompatível com o personagem que a maioria decidiu interpretar: o profissional forte, guerreiro e determinado ou o típico jogador, que sempre é o mais esperto de todos, mas na verdade, todos tentam mostrar uma imagem de que são os ideais para a posição, maduros e preparados para tudo... desde que não envolva o seu conforto inabalável, esforço real ou exposição do próprio despreparo.
Enquanto isso, os resultados murcham.
Clientes percebem o descompasso entre o que se promete e o que se entrega. Primeiro, desconfiam. Depois, reclamam. Por fim, simplesmente vão embora ou são convidados de uma forma ou outra a irem embora.
Mas internamente, o ensaio continua e escutamos no dia a dia que:
“Estamos alinhados.”
“Estamos comprometidos.”
“Estamos fazendo o nosso melhor.
A verdade é que isso tudo é uma mentira das mais lavadas possíveis.
Na prática, o que há é um modelo de negócios adoecido. Uma postura doente e unilateral. Um modelo onde a criação de valor deu lugar à preservação de status quo e uma preocupação exacerbada pelos líderes unicamente pelos seus resultados financeiros e comissões prometidas.
As relações são mediadas agora por jogos de influência e vantagem, e não por confiança. Onde a liderança virou uma caricatura de autoridade formal, barulhenta e vazia. Contudo o trabalho, que deveria ser uma via de progresso pessoal e coletivo, virou uma encenação coletiva para justificar a própria permanência na organização, mesmo diante da falta de produção real.
O que é mais trágico que isso descrito?
É que não se trata de má-fé. Ninguém está exatamente mentindo para os outros. Estão mentindo para si mesmos.
O pior é ver que alguns acreditam que estão entregando algo. Mas estão apenas ocupando funções, preenchendo agendas, despachando e-mails, entrando em calls sem preparo, fazendo reuniões improdutivas e que só reforçam o vazio.
Parecer que estão presentes é importante, mas no fundo estão indisponíveis.
Ativos, mas inconscientes. Ocupados, mas sem gerar valor real.
Porque o problema não é falta de vontade. O problema que se acumula de forma verdadeira é a imaturidade.
Imaturidade para sustentar combinados, para lidar com feedback honesto, para liderar e ser liderado. Imaturidade para compreender que trabalho não é apenas execução, mas caráter em movimento.
Que valores não são palavras bonitas na parede ou no Power Point, são decisões difíceis tomadas todos os dias, mesmo quando ninguém está olhando. Quando essa imaturidade é partilhada por muitos e tolerada por quem deveria elevar o padrão, ela vira contracultura.
Contracultura é uma força invisível que impulsiona a imaturidade e que tem o poder de dissolver qualquer intenção estratégica, tática e operacional de dar certo.
Ela engole talentos, distorce relações, condena decisões e cria um ambiente onde todos aprendem a sobreviver, mas quase ninguém aprende a construir.
O resultado?
Líderes despreparados formando equipes despreparadas, ambientes onde aprender é exceção, e improvisar é regra. Empresas que tentam parecer que crescem nos gráficos, mas encolhem diante do primeiro teste real.
E uma angústia constante, generalizada, disfarçada de correria forma uma sensação de que algo essencial está faltando, mas ninguém consegue nomear por falta de coragem.
Mas eu sei, na verdade, nós sabemos, que o que falta é a verdade.
Verdade nas relações, no compromisso, na humildade de reconhecer os próprios limites, na coragem de pedir ajuda, na disposição de construir sem performance.
Falta aquele tipo de conversa que não resolve tudo, mas abre espaço para que algo novo possa finalmente começar a acontecer para resolver tudo. E que fique claro, isso não se resolve com alguns workshops de fim de semana, nem com campanha de valores na intranet.
Isso se constrói com choque de lucidez, de coragem e de responsabilidade compartilhada o tempo todo o tempo todo.
Um choque que obrigue lideranças a tirarem suas máscaras e assumirem o único papel que realmente importa: o de educadores, exemplos e construtores do que ainda não existe, mas que desejam no fundo do seu coração.
E esse movimento começa com um reconhecimento brutal de que não estamos entregando e fazendo o que prometemos, de não estarmos sendo quem dissemos que éramos.
Sabemos que não estamos prontos, mas podemos começar. Só aí existe alguma chance de futuro. Porque não há cultura autêntica sem transformação pessoal.
E não há transformação pessoal sem atravessar o desconforto. Empresas que desejam resultados coerentes e consistentes, que são construídos por pessoas maduras que precisam cultivar relações maduras.
E relações maduras não nascem da encenação. Nascem do enfrentamento e da realização do que precisa ser feito. É preciso desmontar os personagens. Encerrar os teatros e reabrir as conversas que foram silenciadas por conveniência, negligência, medo ou vaidade.
É preciso recuperar a vontade de construir e aceitar que isso dói, exige, cansa, mas é o único caminho que vale a pena.
Porque, no fim, não se trata de cultura, nem de estrutura ou propósito institucional. Trata-se de disposição humana de fazer certo o que precisar ser feito e isso não é para todos.
É preciso ter disposição para viver com valores o que foi combinado. Mesmo quando for difícil, mesmo quando for desconfortável e mesmo quando for preciso dizer: Eu estava errado.
A partir desse ponto, uma empresa volta a ser empresa e para de ser palco.
Keine Alves
Líder educador e pesquisador
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